terça-feira, 1 de setembro de 2009

Ecos da Dor - Entrevista com David Grossman - sobre o livro "A mulher foge"


O escritor israelense David Grossman estava habituado com as constantes colaborações de seu filho Uri, de 20 anos, no romance que escrevia fazia três anos. Era um livro sobre a cruel realidade vivida por israelenses e palestinos, divididos por ambições similares, mas de impossível convivência conjunta.

“Uri servia o Exército e, nos seus momentos de folga, sempre me perguntava sobre o destino dos personagens”, conta Grossman que, no dia 12 de agosto de 2006, descobriu como a violência externa e a crueldade da realidade geral política e militar penetram no delicado e vulnerável tecido de uma família e acabam por despedaçá-la: Uri e outros três colegas foram mortos quando um míssil libanês atingiu seu tanque, durante uma “operação de resgate”.

Devastado emocionalmente, Grossman interrompeu a escrita até receber o amigo e também autor Amos Oz que, ao abraçá-lo, incentivou-o a retomar o trabalho: em tempos de desgraça, sussurrou Oz, a literatura é a salvação do escritor. Ainda sensibilizado, ele voltou à rotina e terminou “A Mulher Foge” (trad. de George Schlesinger, 656 págs., R$ 58), que a Cia. das Letras lança na próxima quinta-feira.

“Quando comecei a escrever, em 2003, tinha pressentimento (talvez desejo) de que esse livro pudesse proteger meu filho”, disse Grossman à Agência Estado, em entrevista por telefone.
A perda deixou vestígios em sua voz, agora serena e conformada, diferente do tom incisivo com que encantou os frequentadores da Festa Literária Internacional de Paraty, em 2005, época em que se destacava como um dos mais lúcidos intelectuais na defesa de uma solução pacífica para uma questão aparentemente sem resolução entre israelenses e palestinos.
Ao lançar “A Mulher Foge” no ano passado, em Israel, David Grossman evitou entrevistas e badalações - a dor pela perda do filho, Uri, continuava insuperável. O homem que já foi chamado de “a consciência moral de Israel” preferia o silêncio. Com o livro chegando a outros países, porém, Grossman retomou seu papel, participando de lançamentos. Afinal, “A Mulher Foge” imortaliza experiências de Uri, que contava ao pai histórias de sua rotina no exército.
O livro acompanha o percurso de dois homens, uma mulher e os dois filhos dela. Orah abandona a própria casa a fim de evitar a angustiante espera pela volta do filho que, militar, participa de uma importante operação. Ao viajar para a Galileia, ela reencontra Avram, namorado de infância. Juntos, perambulam a pé por Israel, enquanto ela, a fim de manter viva a memória do filho, conta a história de sua vida.

“Não se trata da história de uma perda, mas sobre a vida e suas diversas facetas, sobre a manutenção e também a reconstituição de uma família”, conta Grossman. Trata-se, na verdade, de uma tentativa de revelar a vulnerabilidade e, ao mesmo tempo, da incansável resistência do povo israelense, cujos projetos de vida normalmente não têm grande extensão - enquanto outros países planejam o futuro com décadas de avanço, Israel (assim como seus vizinhos) preocupam-se basicamente em garantir a existência.

A literatura, portanto, desponta como um refúgio. É pela escrita, acredita ele, que o inimigo pode ser entendido por inteiro, com defeitos e também qualidades. O assunto foi tratado na seguinte entrevista.

Em quais aspectos esse livro é distinto dos anteriores?
Grossman - Não sei se consigo dizer. Talvez mais seja esse o romance mais compreensível que escrevi. Tentei combinar histórias familiares, algo muito pessoal, com uma conjuntura mais ampla, envolvendo uma guerra. Claro que busquei isso em outros livros, mas, nesse caso específico, ficou mais evidente que a realidade
exterior penetra de forma violenta na intimidade

Em alguns momentos, o livro transparece um pessimismo. Como quando Orah diz sobre Israel: “Sei que este país não tem chance alguma”. É um reflexo de seus sentimentos?
A maioria dos israelenses têm esse temor, que domina nossos desejos. O resultado é que o otimismo é sugado por esse receio, que também condiciona nossa condição sociopolítica. Somos um país pequeno, com seis milhões de habitantes, provavelmente um terço da população da cidade de São Paulo. E vivemos em um território violento, com poucas perspectivas de paz com nossos vizinhos. Ao mesmo tempo, Israel é um país de contradições, pois, apesar dessa situação, há uma vitalidade evidente, uma vibração intelectual, espiritual, cultural que contagia a cidade. Mesmo em meu livro, que trata de um perigo constante e iminente, há também a descrição da rotina vibrante dos habitantes, como a disposição de Orah em trazer Avram para a vida. Essa descombinação é constante.

Como a literatura se encaixa em uma sociedade oprimida pela guerra e pelo terror?
Em situações de guerra, é normal um certo encolhimento das pessoas, seja mental ou social. A prioridade é se proteger contra tudo. Com isso, o contato com a realidade é minimizado, uma consequência sofrida. Já a literatura aponta para outra direção: ao escrever, o autor se expõe. É possível fazer o que bem entende, até olhar a si mesmo sob o ponto de vista do inimigo. A ponto de, quando percebem que encerrei mais um livro, algumas pessoas perguntam se terminei a escrita fortalecido. Respondo que não é essa a minha intenção: prefiro terminar mais exposto. Não me preocupo em me proteger - de uma forma estranha, a escrita exerce uma função de sobrevivência para mim. Quanto mais me desnudo literariamente, mais acredito ter chance de me salvar, de encontrar alguma solução para os meus problemas.

Sua experiência no exército foi útil na escrita dessa história?
Realmente, passei quatro anos no exército, mas a maioria dos israelenses faz isso. Acredito que me ajudou a entender a realidade: de jovem protegido pela família, transformei-me em um soldado envolvido pela catástrofe da guerra, que torna qualquer ser humano vulnerável. Aproveitei ainda as histórias vividas por meus dois filhos, que também serviram o exército e me auxiliaram a dar uma veracidade à trama

Certa vez, você disse que tudo o que escreve é autobiográfico. Um de seus filhos, Uri, foi morto durante a guerra, em 2006, quando você escrevia esse romance. Assim, seria esse livro de alguma forma autobiográfico?
De fato, tudo que escrevo carrega um pouco da minha existência. Comecei a rascunhar ‘A Mulher Foge’ três anos e três meses antes de Uri ser morto no Líbano. Fiquei desnorteado e me perdi no medo que domina a sociedade israelense . Quando iniciei a escrita, ele ainda não estava no exército e minha expectativa era de estar ao seu lado, descrevendo a realidade que o cercava. Depois de sua morte, percebi que deveria continuar com o trabalho pois essa é a forma de justificar minha existência, de encarar meu destino.

Serviço
A mulher foge
David Grossman
Tradução: George Schlesinger
656 páginas - R$ 58,00 (em méida)
Editora Companhia das Letras

OBS: Entrevista difundida pela Agência Estado

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