quarta-feira, 14 de outubro de 2009

A narrativa de Le Clézio


A viagem pela memória pode ser reveladora. Uma história que registra, entre os traços autobiográficos dos capítulos narrados em primeira pessoa, o período conturbado da Segunda Guerra Mundial e os seus desdobramentos. Esse é o caminho que Jean-Marie Gustave Le Clézio nos convida a percorrer em seu romance mais recente, Refrão da Fome, publicado pouco antes de receber o Prêmio Nobel de Literatura em 2008.

Como em O africano (Cosac Naify, 2007), onde o autor mescla suas vivências de menino às do pai, Refrão da fome traz a reconciliação com o passado a partir de uma história inspirada na trajetória de sua mãe. Ficção e realidade se misturam no resgate íntimo de memórias onde a vida da menina Ethel, protagonista do livro, se entrelaça aos acontecimentos sociais e políticos, durante o período que antecede a Segunda Guerra Mundial até a Ocupação alemã na Paris de 1942.

Filha de imigrantes das Ilhas Maurício, Ethel perfaz o caminho das descobertas, das relações e de suas ruínas. Como em um álbum de retratos desbotados, aos poucos reconhecemos a sensação da perda em múltiplos episódios: a morte de seu tio-avô, a rejeição de sua melhor amiga, a crise no casamento de seus pais, a falência e a miséria. A ruína familiar é aqui metáfora da ruína da História, das feridas da guerra e de uma fome que foi literal, antes de ser simbólica: .Sei o que é fome, que eu já passei. (...) Essa fome está em mim. Não sou capaz de esquecê-la. A luz aguda que ela emite me impede de esquecer minha infância.. Essa fome é o sintoma definitivo de uma infância traída, de uma família em decadência, de um mundo que ainda não sabe prever os efeitos do nazismo.

Em Refrão da fome, o vazio vai-se formando lento, sem sobressaltos, assim como a intensidade lírica da escrita de Le Clézio. A história se desenvolve entre dois capítulos narrados em primeira pessoa (o primeiro e o último) onde o registro autobiográfico traz algumas passagens semelhantes com o romance citado anteriormente, O africano, como por exemplo, quando o autor cita que a miséria da guerra o obrigou a comer pão .à base de farinha mofada e serragem. que quase o matou aos três anos de idade. Em mais uma tentativa de compreender sua própria existência, o autor reconstrói com propriedade o período histórico vivido por Ethel bem como os temas políticos da época, que envolviam, sobretudo, o papel da mulher e sua importância no século XX. A partir desses temas, o autor complementa sua busca inicial de O africano, porém, agora, através das vivências de uma jovem .que aos vinte anos, contra sua vontade, foi uma heroína..

Em uma entrevista ao Le Monde, Le Clézio afirmou: .sinto necessidade de estar ligado a uma identidade e, para mim, isso acontece apenas na linguagem escrita, por meio dos livros. Minha verdadeira família está nos livros, esta é minha pátria. (...) Chegamos a confundir nossas próprias
lembranças com àquelas que adquirimos nas leituras.. Em Refrão da fome, o narrador em primeira pessoa recorda a estreia do Bolero de Ravel, contada por sua mãe. E esse é um dos momentos em que a memória se repete como um refrão na matéria ficcional. Nesse belo romance de aprendizagem, a música está lá sempre, nas portas que batem durante os conflitos familiares, nas vozes que ecoam pelo salão, na colher que mexe o rum diluído em água, limão e açúcar. E na afinação perfeita de uma escrita límpida e superior.

Serviço
Refrão da Fome
J.M.G Le Clézio
Tradução: Leonardo Fróes
248 páginas - R$ 49,00 (em média)
Editora Cosac & Naify

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