sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Os porões do Vaticano


Na França dos séculos XIV e XV, as farsas satíricas eram conhecidas como soties. Assim Gide classifica este Porões do Vaticano, livro que tanto o teria divertido durante o processo de criação.
O prazer experimentado na leitura não é diferente: logo ao princípio, deparamo-nos com personagens marcantes e caricatos, como o maçom Anthime Armand-Dubois, que oscila entre o ceticismo e a fé, a qual não resiste, por sua vez, ao final da história; Amédée Fleurissoire, católico fervoroso que no transcurso da obra é manipulado, pervertido e enganado... E Julius de Baraglioul, escritor que luta para sair da mediocridade.

Algo de muito misterioso envolve a figura do papa, que teria relação com “o antigo mausoléu de Adriano, aquela célebre prisão que, em secretas masmorras, havia outrora abrigado muitos prisioneiros ilustres, e que um corredor subterrâneo liga, ao que parece, ao Vaticano”. Organiza-se uma quixotesca cruzada para resgatá-lo; Protos, o vigarista, entra em cena; o fio da trama se tensiona e assim se manterá até o final da narrativa. O texto flutua na fronteira entre o teatro e o romance, às vezes assumindo ares de farsa ou de comédia barroca, subvertendo os modelos balzaquianos, apresentando aqui e ali toques de uma estética noir.

Espécie de personagem exemplar, encontramos Lafcadio, irmão bastardo de Julius. Se os personagens descritos acima são responsáveis pela nota cômica, é ele quem dá o charme, o desconforto e o horror à tessitura da história. Este livro de 1914 marca a ruptura de Gide com a Igreja e seus primeiros passos rumo à subversão de cânones estilísticos e ideológicos que se completaria em obras como Se o grão não morre (1919) e Corydon (1924). Por sua vez, Lafcadio, alheio ao escrúpulo, capaz de executar atos de heroísmo ou atrocidades com a mesma naturalidade, e que já anuncia à literatura contemporânea possibilidades estéticas como a de um Meursault, de Camus, é a negação de toda e qualquer moral. Sua figura se estende através da narrativa como a promessa assustadora da liberdade total e não permite que o leitor, em nenhum momento, esteja confortável em sua companhia.

Serviço
Os porões do Vaticano
André Gide
Tradução: Mauro Pinheiro
256 página - R$ 40,00 (em média)
Editora Estação Liberdade

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