segunda-feira, 5 de abril de 2010

Gabriel García Marques: Uma vida - Gerald Martin



Por Alvaro Costa e Silva

Jornal do Brasil

RIO - “Bem, suponho que todo escritor respeitável devesse ter um biógrafo inglês”, disse Gabriel García Márquez ao ouvir numa conversa o nome de Gerald Martin, o sujeito que desde 1991 vem escarafunchando a vida dele. Parte dessa investigação apareceu em 2008, com a publicação de Gabriel García Márquez: uma vida, cuja tradução chega às livrarias do Brasil no dia 24 de março. Parte porque, segundo Martin, trata-se de uma versão “compacta”, apesar de suas quase 800 páginas, de uma biografia muito mais longa, provavelmente em cinco volumes, que o inglês pretende publicar no futuro. O autor considera sensato atrasar a tarefa gigantesca enquanto o tema da obra, “agora um homem com mais de 80 anos, ainda está vivo e em condições de lê-la”.

Nos agradecimentos de praxe, Gerald Martin quase pede desculpas: “Um dos fardos e, sobretudo, uma das responsabilidades de se pesquisar uma biografia é que se tem de pedir inúmeros favores a muitas pessoas, que respondem, em sua maioria, com generosidade e boa vontade, ainda que não tenham absolutamente nada a ganhar pelo seu esforço”. Não se trata de elegância britânica. É que ele sabia, desde o início, que a tarefa seria difícil, quase impossível.

Quando começou o trabalho, o biógrafo ouviu de todos com quem conversou: “Você jamais conseguirá vê-lo e, se conseguir, ele não vai cooperar”. A primeira barreira Martin venceu: encontrou pessoalmente o biografado. Mas não se pode dizer que ele estivesse transbordando de entusiasmo, pois falou: “Por que você quer escrever uma biografia? Biografias significam morte”. E como todo mundo e mais a torcida do Real Cartagena sabem, Gabriel García Márquez tem um medo de morrer que se péla.

Mesmo assim, o escritor – homem de imprensa acostumado a valer-se de fontes e a respeitá-las – teve paciência com o inglês. Concordou sob uma condição: “Não me faça fazer o seu trabalho”.

Martin foi em frente e, esperto, inventou um subgênero para definir o que pretendia fazer: “Sempre que me perguntavam se era uma biografia autorizada, minha resposta era a mesma: é uma biografia tolerada”.

Gabriel García Márquez nunca concedeu a Gerald Martin uma “entrevista desarmada e sincera”, com a qual o biógrafo ainda sonha. Tal entrevista seria “uma indecência”, segundo o escritor colombiano – o que soa estranho para um velho repórter.

Pelas contas de Martin, os dois estiveram juntos no total um mês – em tempos diferentes e lugares diversos, de forma privada e pública. Nesse período, Martin ouviu um conselho cascudo: “Apenas escreva o que você vê. Seja lá o que escrever, é o que serei”.

Pegar o fio da meada para fazer Gabriel García Márquez: uma biografia – o autor é o primeiro a admitir – também não foi nada fácil. Gerald Martin teve de decifrar as múltiplas versões que o escritor costuma dar aos momentos importantes de sua vida – sem falar que ele próprio, adiantando-se ao biógrafo, escreveu uma autobiografia, Viver para contar. Como Martin poderia dar melhor o clima do bogotazo – protestos e desordens no centro da capital colombiana que se seguiram ao assassinato do candidato a presidente Jorge Eliécer Gaitán em 1948 – que García Márquez, que estava lá, no meio da turba? Ou narrar a viagem de volta a Aracataca para vender a casa, a famosa casa dos avós, onde ele nasceu – um episódio cheio de significados literários ocultos?

García Márquez – assim como outro grande contador de histórias, Mark Twain – é chegado a invencionices e exageros com sua própria trajetória. No Brasil, chamamos passarinho a essa mentira que arredonda a anedota. Ao mesmo tempo, é brincalhão, antiacadêmico, a favor de mistificações, intrigas e fuxicos, como o descreve o próprio Martin. Na Colômbia, chamam a essa atitude de mamagalismo (alguma coisa entre o debochado e o cafajeste).

Sabendo disso, a pergunta de García Márquez fica ainda mais pertinente: “Por que você quer escrever uma biografia?”.

Porque o inglês é fãzoca, macaca de auditório – de tudo que diga respeito ao criador de Macondo. Martin demonstra uma adoração digna de santo em relação a García Márquez, que é posto nos cornos da lua:

1. Autor mais conhecido que emergiu do Terceiro Mundo;

2. Expoente de uma escola literária, o realismo mágico, que teve milhares de seguidores (entre eles, é citado Salman Rushdie);

3. Romancista latino-americano mais admirado e representativo de todos os tempos;

4. Único grande nome das letras na segunda metade do século 20 a ter conseguido unanimidade (na primeira, são citados Joyce, Proust, Kafka, Faulkner, Virginia Woolf.).

5. Sua obra-prima Cem anos de solidão é um vértice da transição entre a ficção modernista e a pós-modernista;

6. Cem anos de solidão é também o único livro publicado entre 1950 e 2000 que encontrou grande número de leitores em todos os países e em todas as culturas do mundo. É portanto o primeiro romance globalizado;

7. Escritor sério mas ao mesmo tempo popular, que vende milhões de livros (na mesma condição, são citados Dickens, Victor Hugo e Hemingway);

8. Sua celebridade só se assemelha à de atletas, músicos e estrelas de cinema (Pelé é citado);

9. Mais popular ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, em 1982;

10. Amigo de François Miterrand, Felipe González, Bill Clinton e Fidel Castro.

Martin, bem à inglesa, acha admirável que tudo isso tenha acontecido a um homem que nasceu “onde o vento faz a curva”, uma cidade com menos de 10 mil habitantes, analfabetos na maioria, com ruas não pavimentadas e sem esgoto. E com um nome – Aracataca – que faz as pessoas rirem quando o escutam pela primeira vez. “Embora” – completa o biógrafo – “sua semelhança com Abracadabra devesse torná-las mais cautelosas”.

Exotismos e deslumbramentos à parte, Martin recupera passagens e depoimentos sobre a infância do escritor que estão intimamente ligados a sua obra. O que a mãe achava do filho? “Gabito sempre foi velho. Quando criança, ele sabia tanto que parecia um homem velho pequenino. Era assim que nós o chamávamos: o velho pequenino”.

Sentava-se ao lado do avô Nicolás Márquez – aquele que matara um homem e dormia com um revólver debaixo do travesseiro – para ouvir as histórias sobre a Guerra dos Mil Dias, a presença da United Fruit Company nas plantações de banana e os horrores da greve de 1928 que terminou em massacre – episódios da história da Colômbia recriados em Cem anos de solidão. Assim como a lembrança de quando o mesmo avô o levou para ver o peixe congelado. Na fala de García Márquez: “Eu o toquei e senti como se ele tivesse me queimando”. E nas palavras da famosa abertura: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”.

Reza a lenda que em 1965, dirigindo um pequeno Opel branco pelas estradas de curvas perigosas de Acapulco, García Márquez começou a ter a cabeça martelada pela primeira frase de um romance. Aquela: “Muitos anos depois….”. Por trás dela, invisível, estava o romance inteiro, como se ele fosse um cavalo e a obra tivesse baixado nele. Muitas são as versões e os detalhes a respeito dessa história, e Gerald Martin não esclarece nenhum deles. Ao contrário, alimenta o mito, ao dizer que “seja lá qual for a verdade, algo misterioso, para não dizer mágico, com certeza aconteceu”.

O livro apresenta uma detalhada descrição do tempo em que García Márquez passou escrevendo Cem anos…, trancado num quarto de sua casa – apelidado de A Cova da Máfia – de junho de 1965 a julho ou agosto de 1966. Desmentindo a lenda do cavalo das letras, o escritor reconheceu que sua maior dificuldade foi começar: “Terminei a primeira sentença e me perguntei, aterrorizado, que inferno viria depois. Até que o galeão fosse descoberto no meio da selva, não achava que o livro chegaria a lugar nenhum. Mas, daquele ponto em diante, a coisa toda se tornou uma espécie de frenesi”.

Ele que em geral escrevia um parágrafo por dia agora estava escrevendo várias páginas. Pregava-se à escrivaninha às 8h30 e ia até 14h30, quando os filhos voltavam da escola. Mercedes, a mulher, teve de lutar para conseguir dinheiro. As reservas haviam acabado. Primeiro, venderam o Opel branco. Quase cortaram o telefone, pela economia e para evitar a interrupção do trabalho. Depois começaram a empenhar tudo: televisão, geladeira, rádio, joias, secador de cabelos, liquidificador, aquecedor. O aluguel e a conta do açougue foram conversados.

Quando enfim o livro ficou pronto, quase não tiveram dinheiro para remeter os originais pelo correio ao editor argentino Paco Porrua, que concordara em publicar o romance no escuro. Mercedes comentou: “Só falta agora o livro não ser bom”.

Um dos maiores méritos de Gerald Martin são seus comentários acerca da obra de García Márquez – o que torna o livro mais próximo de um ensaio biográfico que de uma biografia. Sobre Cem anos…, afirma que o escritor aprendeu “que, em vez de um livro sobre a infância, deveria escrever sobre as memórias da infância. Em vez de um livro sobre Aracataca e sua gente, deveria ser um romance narrado pela visão do mundo daquela gente. Em vez de tentar mais uma vez ressuscitar Aracataca, ele diria adeus, narrando-a não apenas através da visão de mundo de seu povo, mas inserindo no romance tudo o que lhe havia acontecido, tudo que sabia sobre o mundo, tudo que ele era e que personificava como um latino-americano do fim do século 20. Em outras palavras, em vez de destacar a casa e Aracataca do mundo, Gabo colocara o mundo todo dentro de Aracataca. E, acima de tudo, em termos sentimentais, em vez de tentar acordar o fantasma de Nicolás Márquez, ele próprio deveria de algum modo se tornar Nicolás Márquez”.

Da mesma forma, outros toques de Martin iluminam obras não menos importantes como O outono do patriarca, Crônica da morte anunciada, O amor nos tempos do cólera, e uma novela menos badalada, mas de estofo literário superior a Cem anos de solidão, como Ninguém escreve ao coronel.

Mas não há uma visão do García Márquez de carne e osso, sua relação com os pais, a família, a mulher, os filhos, os amigos, os colegas de profissão, o fumo, a bebida, a fama, a solidão da fama. Coisas comezinhas de qualquer vida. Por exemplo, o que ele acha de Roberto Bolaño?

Sobre a amizade com Fidel Castro – que reserva lances inacreditáveis: a vez em que o escritor serviu de guarda-costas para o ditador numa visita à Colômbia – não há explicação. Mas neste caso Gerald Martin não tem culpa se, diante do barbudo, García Márquez usa antolhos.

A briga com Mario Vargas Llosa é bom exemplo do que falta ao livro. Os dois, na época do chamado boom da literatura latino-americana, nos anos 60, tornaram-se amigos de fé, camaradas. O peruano escreveu o catatau García Márquez: historia de un deicidio, um estudo ficcional orientado em termos biográficos, que Martin considera até hoje o melhor livro já escrito sobre o colombiano e fonte fundamental de referência.

Em 12 de fevereiro de 1976, na Cidade do México, Gabriel García Márquez compareceu à première do filme Os sobreviventes dos Andes. Ao chegar, Mario Vargas Llosa – que escrevera o roteiro – estava de pé no foyer do cinema. García Márquez abriu os braços e exclamou: “Irmão!”. Sem sequer uma palavra, Mario, “um consumado boxeador” (esta informação espantosa é de Martin), derrubou-o com um soco.

A essa altura do fato, Martin começa a especular: com o colombiano semiconsciente no chão, o peruano gritou: “Isso é pelo que disse a Patricia”. Ou: “Isso é pelo que fez a Patrícia”. Ora, são coisas bem diferentes.

Escreve o exagerado e impreciso inglês: “Esse se tornaria o soco mais famoso na história da América Latina, ainda sujeito a ávidas especulações até hoje. Houve várias testemunhas, e existem muitas versões, não apenas sobre o que de fato aconteceu, mas sobre o motivo”.

Continua Martin: “Dizem que o casamento de Vargas Llosa passou por um momento difícil em meados dos anos 70, e que García Márquez se arvorou para consolar a mulher ressentida e pertubada de Mario. Outros dizem que fez isso aconselhando-a a iniciar os procedimentos do divórcio; outros, que o conforto foi mais direto. É evidente que Mario concluiu García Márquez colocara a preocupação por Patrícia na frente da amizade entre os dois. Apenas Patricia Llosa sabe o que disse ao marido quando os dois se reconciliaram. Em outras palavras, somente ela sabe a história inteira”.

Ao menos Gerald Martin reconhece que alguém sabe a verdade.

Leia trecho abaixo:

“García Márquez sempre temera a morte e, por consequência, também temera as doenças. Desde que se tornara famoso, sempre seguira quase todas as recomendações médicas para uma vida saudável. E agora, apesar de todas as precauções, tinha adoecido. Poucas coisas eram mais aterradoras do que um câncer no pulmão. Mesmo assim, ele surpreendeu a si mesmo e àqueles que o conheciam. Aceitou o desafio e insistiu em aprender tudo sobre a doença e seus prováveis prognósticos, para depois se gabar: ‘Eu dominei minha vida’. Gabo deveria fazer repouso absoluto durante seis semanas, mas em 10 de junho anunciaram que ele estaria na Exposição de Sevilha em julho, como previsto, não apenas para inaugurar o Pavilhão da Colômbia mas também para lançar seu livro mais recente. Sabia-se que agora havia 12 ‘contos peregrinos’, e que o livro estava pronto.

García Márquez quase tomou de assalto a Exposição de Sevilha. Depois de sua chegada à cidade andaluza, tornou-se mestre absoluto do stand da Colômbi, apesar de ter declarado em Madri que não haveria um ‘Pavilhão de Macondo’ em Sevilha. (…)

Na realidade, essa foi a primeira vez que García Márquez compareceu ao lançamento de um de seus livros.

Serviço
Gabriel García Marques: Uma vida
Gerald Martin
350 páginas - R$ 45,00 (em média)
Editora Ediouro

Nenhum comentário: