Os leitores das revistas Lire e L’Histoire conhecem bem Pierre Assouline (n. 1953), o escritor francês de origem marroquina que escreveu as biografias de Hergé e Georges Simenon. Os outros talvez se lembrem de um dos seus romances, Vida Dupla (2000). E, a avaliar pelo interesse que a literatura parece suscitar num número significativo de bloggers portugueses, é de prever que o seu blogue La République des livres seja muito concorrido. Por último mas não em último, Assouline é o homem que fez frente a Maria Kodama, viúva de Jorge Luís Borges, acusando-a de dificultar o acesso ao espólio do argentino.
Rosebud (2006), agora traduzido (Rocco, 2010), é uma colecção de ensaios biográficos de extensão variável. Rosebud significa botão de rosa mas, desde que foi usado por Welles em Citizen Kane (1941), as derivações semânticas atropelam-se. Do último analfabeto ao laureado Carlos Fuentes, todos se inclinam diante do espectro da palavra. Conhecedor do seu poder encantatório, nada mais natural que Assouline antecipasse a curiosidade associada à escolha. Éclats de biographies seria redutor…
Muito à francesa, Assouline teoriza largamente sobre o tema: «Há mais de trinta anos que procuro esse rosebud [...] em cada um. Esse pequeno nada que nos trai revelando-nos aos outros.» Isto para dizer que o biógrafo é um escrutinador de almas, aquele que procura as «sombras do seu herói». Para tanto, Assouline cita os biografemas de Barthes, o «regalo branco» de Sade, a imundície de Destouches e Céline, a faxina de Beckett em casa de um casal de amigos músicos entrevados, a rotina matinal da Duras: «faz a sua cama todas as manhãs, senão não consegue trabalhar.» Simplificando muito, pode-se dizer que este Rosebud é a versão gaulesa de Intelectuais (1988) do britânico Paul Johnson. Ponto de partida, Welles. Ou não fosse Citizen Kane, ele o diz, «a matriz da biografia moderna.» A ver vamos.
Rudyard Kipling, por exemplo. Pouca gente se lembra que ele nasceu na Índia, mais precisamente em Bombaim, um entre tantos escritores despaísados (Beckett, Brodsky, Camus, Coetzee, Conrad, Derrida, Duras, Eliot, Ionesco, Nabokov, Orwell, Rushdie, etc.), como, aliás, o próprio Assouline, mas os Rolls-Royce do autor de If (1910) sobrelevam a questão identitária. Kipling, hoje quase esquecido, foi famoso por parâmetros que décadas mais tarde seriam os dos Beatles e de Madona: «O rumor do mundo precedeu o clarão do Nobel. [...] A humanidade dos seus leitores desloca-se em massa ao cais para [o] acolher no seu regresso da viagem para lá do Atlântico…». Numa escrita ágil e sedutora, Assouline recupera as circunstâncias e o ar desse tempo.
Contra a assepsia do relato neutro, o discurso tem laivos de grandiloquência. Discreteando sobre Cartier-Bresson, dirá que a querela da imagem (entre os defensores do 24×36 e os defensores do 6×6) é um «falso debate» que se resolve entre «violência e cortesia».
A descrição do casamento do príncipe Carlos com a futura Lady Di, em Julho de 1981, é um prodigioso exercício de ironia. Depois de explicar como conseguiu lugar na Catedral de St Paul na qualidade de repórter do France-Soir, Assouline reduz a Inglaterra a uma síntese mordaz: «um conservatório de salsichas, chapéus-de-chuva, lítotes e classes sociais.» No meio de centenas de homens de fraque e calça de fantasia, conforme as regras do Burke’s Peerage e as exigências do convite, dois convidados estão de fato azul-escuro: Assouline e David Owen, o irreverente ministro dos Negócios Estrangeiros de Callaghan que meses antes abandonara com estrondo o Partido Trabalhista. Owen tinha o problema suplementar de calçar sapatos novos, não se tendo dado ao trabalho de os entregar a um criado que os dobrasse as vezes necessárias de modo a «retirar-lhes o aspecto intolerável da novidade». Heresia maior numa sociedade habituada a dividir a humanidade em função dos pés: «a parte de cima do sapato deve estar usada, a parte de baixo não deve oferecer o espectáculo cinzento e vulgar da rua.» Paradoxos de sofista, conclui Assouline.
Paul Celan é recordado em 23 páginas admiráveis: «Uma obra difícil começa sempre por ter amigos antes de ganhar um público. Tanto pior se eles não se amam.» Jean Moulin, o herói da resistência francesa, tem um retrato à altura da lenda.
Como bom francês, Assouline não dispensa a teoria: «Um simples gesto pode ser uma obra de arte.» Não havia necessidade. A qualidade dos seus ensaios dispensa a prestidigitação retórica.
Leia trecho abaixo:
“Estamos em meados dos anos 1930. O ateliê da rua La Boétie, onde Picaso se instalou, é pequeno demais. Dora Maar se encarrega de encontrar outra coisa no Quartier Latin onde ela vive, o mais perto possível de sua casa, na rua de Savoie. Fala-se de um lugar na rua dos Grandes-Augustins. Aquele que Georges Bataille utilizou para reuniões de seu grupo Contra-Ataque. O mesmo que Jean-Louis Barrault ocupou para seus ensaios de teatro do grupo Octobre, depois de ter feito trabalhar ali sua primeira trupe, a Compagnie du grenier des augustins. Antes deles, ali tinha estado o ateliê de um tecelão. (…)
Picasso é imediatamente conquistado. O lugar tem um não sei quê do Bateau-Lavoir, mais amplo. Poucos biógrafos se aventuram a imaginar que o pintor e sua companheira se tenham aproximado de Balzac. Um deles até julga ver ali ‘um sinal do destino’. Nenhuma alusão, porém, nas cartas, lembranças, arquivos, entrevistas de Picasso. Nem sequer a posteriori. Em 1937, o número 7 da rua dos Grands-Augustins é par ele ‘o sótão de Barrault’, após ter sido para ela ‘o local de Bataille’, e, antes de se tornar o ‘ateliê de Picasso’. O casal ignora tudo sobre o passado da antiga residência dos duques de Saboia. (…) ‘É aqui’. Picasso pregou com percevejos um pedaço de papel na porta, dirigido àqueles a quem o ambiente assusta. Atrás da porta, o ateliê se impõe imediatamente como as grandes personagens”.
Serviço
Rosebud
Pierre Assouline
Tradução: Carlos Nougué
208 páginas - R$ 35,00 (em média)
Editora Rocco
Nenhum comentário:
Postar um comentário